A pandemia e as relações contratuais privadas

A pandemia e as relações contratuais privadas


09/06/2020 - 11:28:00

A pandemia e as relações contratuais privadas


Em 11 de março do corrente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) elevou o estado da contaminação à pandemia de Covid-19, doença causada pelo novo Corona vírus (Sars-Cov-2). A alta transmissibilidade da doença e a necessidade de adoção de medidas emergenciais explicam a disruptura na cadeia produtiva (produção/intermediação/crédito/consumo). No Brasil, ainda no mês de março, o Congresso Nacional publicou o Decreto Legislativo nº 06/2020 que, entre outros efeitos, reconhece o estado de calamidade pública. A partir de então, uma enormidade de atos normativos que têm sido editados pelos entes federativos e por diversos órgãos governamentais.


Notório que o esforço legislativo visa minimizar ou permitir que se passe pelo estado de calamidade com controle de danos e alguma possibilidade de restabelecer a normalidade no menor tempo possível, com menor impacto.


A abordagem neste espaço de diálogo é jurídico-econômica, e não se trata de estabelecer uma separação entre saúde e economia. A saúde, salvo as mazelas da gestão, em regra não preocupa em situações de normalidade e estabilidade nas relações. Porém, agora, é a saúde que mais preocupa, especialmente, pela alta transmissibilidade da doença que impacta a vida das pessoas e a cadeia produtiva.


Estamos vivendo tempos de conflitos de natureza econômica: basta que se observe, por exemplo, a diminuição da renda, a impossibilidade de entrega de bens, a dificuldade de produção, o fechamento de estabelecimentos por imposição legal, a diminuição da utilidade dos bens, entre outros.


A pandemia, vamos tratar assim, trouxe à tona o velho problema entre Direito x Realidade. O tempo do Direito, o jurídico (e as decisões) não necessariamente, quase nunca é verdade, oferece resposta tempestiva e eficaz na perspectiva da realidade e dinâmica empresarial (fluxo de caixa).


Contrato é instrumento de circulação de riquezas


São tempos extraordinários e exigem respostas extraordinárias. Os instrumentos jurídicos que abstratamente podem resolver conflitos são muitos. Mas será que esses instrumentos do direito entregam solução tempestiva e adequada à dimensão do problema atual?


Em nosso sistema jurídico vigora o princípio da obrigatoriedade - pacta sunt servanda. Com o devido perdão do corte histórico, recentemente a autonomia privada ganhou maior relevo com o advento da Lei 13.872/2019 (Lei da Liberdade Econômica), especialmente ao inserir alterações no art. 421 do CCB. Como destaque, ao fixar a regra que nas relações contratuais privadas prevalecerão o princípio da intervenção mínima e a excepcionalidade da revisão contratual; a presunção, quanto aos contratos civis e empresariais, de paridade e simetria até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção. Com efeito, restou positivado de modo expresso que a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada.


Se por um lado a autonomia privada ganhou reforço, e não menos relevante é sempre oportuno lembrar que as relações privadas seguem norteadas pelo princípio da boa-fé (art. 422, CCB) e pela vedação do abuso de direito (art. 187, CCB).


Em balanço, é verdade, a relativização da força vinculativa dos contratos encontra espaço nos princípios do equilíbrio e da justiça social. Aqui, digno de nota, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro ao dispor sobre o dever de julgar com base nos fins sociais estabelece importante conexão entre o direito e à realidade.


Em tal contexto, não se pode deixar de mencionar as teorias revisionistas com evidente aplicação no contexto de calamidade (Teoria da Imprevisão, Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico e a Teoria da Onerosidade Excessiva, ou da Lesão). Não é objeto tratar do temos de modo amplo. Assim, em apertada síntese, a ninguém escapa que todas as teorias revisionistas visam evitar a extinção pura e simples do contrato e (re)estabelecer o equilíbrio. Com o devido perdão pela superficialidade no trato da matéria, as três teorias têm em comum a exigência de uma relação continuada e o binômio “excesso de ônus – vantagem”. A Teoria da Imprevisão (art. 317, CCB) exige circunstância superveniente e imprevisível, de modo a permitir a revisão da relação jurídica, que nasceu equilibrada. Na Teoria da Quebra da Base Objetiva (Art. 6º, V e 51 do CDC), parte-se de relação de consumo com desequilíbrio ab initio. Por fim, na Teoria da Lesão (art. 157, CCB), parte-se da relação de natureza civil com desequilíbrio desde o início do negócio jurídico.


Pandemia como vetor de imprevisibilidade


A pandemia inseriu inegável elemento novo e imprevisível. E, imprevisível não diz respeito com a possibilidade ou não de ocorrer uma pandemia, mas sim a inserção de um vetor determinante de impacto antes não mapeado, ao menos na extensão que ora nos atinge.


Então como organizar o pensamento atual na perspectiva da solução dos conflitos complexos?


De pronto, surgem indagações como: Capacidade ou incapacidade do conjunto de nossas normas em propiciar resposta aos desafios regulatórios neste momento de crise? A necessidade e a efetividade das medidas excepcionais editadas na pandemia? A dinâmica de interatividade da legislação ordinária e a legislação excepcional e os programas governamentais de auxílio emergencial?  Insegurança jurídica causada pelo excesso ou mesmo pela falta de parâmetros legislativos seguros? Os feitos intertemporais decorrentes da pandemia – a futura solução legislativa e jurisprudencial? Os obstáculos para a renegociação dos contratos complexos e conexos.


Ora, buscar a pura e simples aplicação de alguma teoria revisionista não é suficiente. Qual o fato terá repercussão no meu caso? A depender do ocorrido e dos efeitos, pode-se pensar na força maior, na imprevisão, na onerosidade excessiva e, a partir daí o desejo de um desenho para restabelecer o equilíbrio da relação, ou a extinção do contrato com menor impacto, talvez.


Como se sabe, na tradição do direito de origem latina é via corrente que as obrigações pecuniárias são sempre possíveis. É dizer, não é dado ao devedor meramente dizer não tenho como pagar. A solução é pedir empréstimo, fazer sacrifícios, enfim, coisas do gênero. A obrigação pecuniária persiste e vai do inadimplemento à insolvência. A força maior, aqui, nada resolveria. As exceções foram pensadas para outras espécies de obrigações.


No caso da COVID-19, por exemplo, regras como a suspensão de pagamento de prestações habitacionais (espécie de “moratória”) elevou a força maior como elemento bastante e suficiente para abandonar séculos de tradição e impor a suspensão da obrigação pecuniária. Mais parece ser uma opção paliativa e irrefletida em meio ao cenário de crise.


Sobre a imprevisão, forçoso notar que, no contexto atual, no fundo não há propriamente discussão sobre a obrigação em si. Posto o fato imprevisível, não parece razoável colocar em debate a obrigação em si. O que se deseja, no fim das contas, é ajustar o momento e a forma de cumprimento da obrigação, outrora estabelecida com equilíbrio, mas que por vetor extraordinário e imprevisível impôs a uma ou ambas as partes suportar ônus excessivo.


A onerosidade excessiva, senão como causa em si, mas efeito colateral de alteração extraordinária no sinalagma, em juízo confere ao magistrado, na sua aplicação, primeiro a extinção do contrato (art. 478, CCB), ou como sói ocorrer, possibilita revisar o contrato por onerosidade excessiva pela imprevisão, com a inserção de elemento externo e de severo impacto na relação contratual.


Há quem se preocupe com a (in)segurança jurídica. A onerosidade excessiva como causa para resolução do contrato é cláusula geral e como tal sem previsão de efeitos predefinidos; e jurisprudencialmente acaba sendo vetor de revisão. Logo, na hipótese de judicialização da questão, a decisão (efeitos) ficará ao arbítrio do juiz, com a inserção de mais um elemento de incerteza. Mas é justamente essa a finalidade: deixar a cargo do juiz decidir os efeitos, porquanto não taxados no Código Civil. Daí ser regra do jogo, sustentar a incerteza ao levar o conflito para o judiciário.


No mesmo sentido, muito embora os diversos instrumentos legislativos, extraordinários, que têm sido publicados para minimizar impactos ou viabilizar ajustes nas relações, como o exemplo da suspensão no pagamento das prestações habitacionais, fica a sempre dúvida: quem se beneficiou da moratória poderá depois de cessado o estado de calamidade postular a revisão contratual com base na pandemia? O fato – “imprevisível” – não seria o mesmo?


Isso por si já bastaria como indicativo que é preferível o uso da via negocial e coexistencial para que a solução seja a desejável pelas partes e uma decisão imposta pelo juiz.


Como se vê no contexto atual, de quebra na cadeia produtiva e com reflexos sobre vários agentes econômicos, o que existe - evidentemente sem desconhecer dos demais efeitos - é um problema de solvibilidade (de caixa) e que, sob prisma contratual não diz propriamente respeito com a justiça interna do contrato.


E é nesse cenário complexo de pandemia que toma relevo a presença de interesses supraindividuais nos contratos, tudo a impor às partes um caminhar lado a lado para ajustes conciliatórios, uma vez que os dois lados (ou vários lados) estão amargando perdas.


Pandemia ou não, fica mais do que evidente que devemos superar o paradigma da análise estanque e individualizada do contrato (credor-devedor-sinalagma) e trazer para a mesa redonda de solução todos os envolvidos na cadeia contratual complexa, que foram ou serão atingidos.


De resto, como se tem notado, a solução para o enfrentamento da crise nos contratos será alcançada, no tempo da realidade e útil, por meio da autonomia privada, notadamente pelos meios alternativos de solução de conflitos, com a indispensável participação dos advogados.


Abel Filiciani.

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