Fornecimento de empréstimos a idosos hipervulneráveis - existência, validade e responsabilidade civil

Fornecimento de empréstimos a idosos hipervulneráveis - existência, validade e responsabilidade civil


25/08/2023 - 17:01:00
O Estatuto do Idoso reconhece que a pessoa com idade igual ou superior a sessenta anos merece proteção especial por ser presumidamente vulnerável, embora não tenha afetada a sua capacidade civil, de modo que envelhecimento e capacidade jurídica são conceitos dissociados e, justamente por isso, o respeito a ambos significa proteção à dignidade do idoso.

Não obstante, é fato que, na atual sociedade de consumo, a preservação dessa dignidade, justamente pelo reconhecimento da plena capacidade civil do idoso, aliado à sua presumida hipervulnerabilidade, impõem um cuidado maior na busca de sua proteção integral, quando da análise de suas relações com as instituições financeiras, que têm empregado práticas abusivas e agressivas no fornecimento de crédito, nos moldes previstos no art. 39, IV, do Código de Defesa do Consumidor, gerando endividamento e até superendividamento, com exclusão social por dívidas de consumo, prevalecendo-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade.

Considerando que todo negócio jurídico há que ser analisado a partir, em primeiro lugar, dos seus pressupostos de existência, seus elementos essenciais, depois, dos requisitos de validade e, por fim, da sua capacidade de produção de efeitos ou seus fatores de eficácia, possuindo, assim, três planos: de existência, de validade e de eficácia1, é possível analisar os planos de existência e validade dos contratos de empréstimo que têm sido ofertados aos consumidores idosos, sem qualquer preocupação com sua hipervulnerabilidade, com sua adequada informação e com sua compreensão acerca do negócio que está sendo realizado. Essa análise se mostra necessária na medida em que, nessas práticas de oferta claramente predatória, "as fragilidades desses consumidores hipervulneráveis têm sido indevidamente exploradas pelos fornecedores, que efetivamente desrespeitam sua dignidade humana e os levam ao superendividamento de maneira intencional."2

Tem se tornado voz comum nos tribunais pátrios relato da prática de instituições financeiras que, sem qualquer solicitação prévia do consumidor idoso, depositam quantia em sua conta-corrente, a título de empréstimo, e passam a descontar parcelas em seu benefício previdenciário, ou na própria conta bancária, impondo um mútuo, com pagamento consignado ou não, sem declaração de vontade da outra parte. Nesse ponto, cabe perquirir sobre a existência do contrato. Ora, se o consumidor não declarou a sua vontade no sentido de contratar o mútuo junto à instituição financeira, é inegável que o contrato não existe, pois falta a ele elemento essencial e, portanto, pressuposto do plano de existência, a vontade declarada do agente3. Não obstante, nem sempre a jurisprudência tem assim considerado.

Essa prática é expressamente estabelecida como abusiva pelo Código de Defesa do Consumidor, que dispõe, em seu art. 39, III, ser abusivo o envio ou a entrega ao consumidor, sem solicitação prévia, de qualquer produto, ou o fornecimento de qualquer serviço, estabelecendo como sanção ao fornecedor que assim age a equiparação do produto ou do serviço a amostra grátis, conforme parágrafo único do mesmo dispositivo. Isso decorre justamente do fato de que, para o consumidor, o contrato inexiste, mas o fornecedor deve ser punido pela abusividade de sua conduta, com o perdimento do produto. Conquanto se trate de previsão expressa, sem ressalva, a jurisprudência tem decidido que, quando se trata de fornecimento de dinheiro sem solicitação prévia, o consumidor deve devolver a quantia ao fornecedor, não se aplicando a sanção do art. 39, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, e isso tem fomentado a prática espúria dos fornecedores de crédito. Ocorre que não parecer vingar a alegação de que o uso da quantia importa em aceitação tácita e, portanto, em contratação, na medida em que quaisquer outros produtos ou serviços também serão utilizados se fornecidos sem solicitação e, para eles, o perdimento é aceito sem discussões.

A título de exemplo, o TJMG é pacífico em não estender o conceito de amostra grátis à quantia em dinheiro fornecida sem solicitação prévia, entendendo ora "não se tratar de produto ou serviço stricto sensu"4, outras vezes confundindo a questão do fornecimento sem solicitação com empréstimo feito mediante fraude, situações diversas e que merecem tratamento diferenciado, se bem que as fraudes devem ser analisadas com cautela, pois quase sempre são inescusáveis aos bancos. Conquanto todos os demais tribunais pátrios também não estejam aplicando a equiparação do numerário disponibilizado sem solicitação a amostra grátis, o TJSP já decidiu pela equiparação mais de uma vez5, embora tenha várias outras decisões indeferindo esse pedido6, inclusive sob a alegação de que "os valores foram disponibilizados à autora na expectativa de regular contratação."7 No TJRJ, ao seu turno, para afastar a aplicação do art. 39, parágrafo único, já se afirmou que "tem-se, de fato, situação distinta do oferecimento de produto ou serviço, normalmente para difusão da atividade e incremento de clientela, pois é sabido que bancos e congêneres não disponibilizam ativos financeiros com esse fim."8

Se existente, o contrato de concessão de crédito ao consumidor idoso está sujeito a vicissitudes que podem atingir sua validade9, embora a capacidade civil não esteja relacionada à idade avançada da pessoa, não sendo o idoso incapaz. Fato é que, embora plenamente capaz para os atos da vida civil, o idoso é, conforme já afirmado, presumidamente hipervulnerável, estando mais suscetível a ser vítima de algum vício do consentimento ou vício social, chamados no Código Civil de defeitos dos negócios jurídicos. Além disso, o próprio Código de Defesa do Consumidor traz situações especiais de proteção ao consumidor idoso, que podem levar à invalidade do negócio ou de parte de suas cláusulas.

Nesse sentido, o art. 39, IV, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece como abusiva a prática de "prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços", mas não estabelece uma sanção específica para o fornecedor que se utiliza dessa prática, justamente porque a mesma pode ocorrer em momentos diversos da relação, como na fase pré-contratual, contratual e pós-contratual, demandado solução diversa e adequada a cada momento10. Ao impingir, na dicção legal, a contratação do empréstimo ao consumidor idoso, prevalecendo-se de sua hipervulnerabilidade, a prática abusiva se inicia na oferta e se prolonga à fase de formação do contrato, celebrado a partir de ardis implementados pelo fornecedor, que abusa do direito. Assim, o contrato pode ser inválido, se foi celebrado pelo consumidor a partir de ato doloso do fornecedor, situação bastante provável nessa prática, nos termos do art. 145 do Código Civil, gerando sua anulabilidade.

O art. 54-C do Código de Defesa do Consumidor traz práticas vedadas na oferta de crédito e estabelece, em seu inciso IV, a proibição de "assediar ou pressionar o consumidor para contratar o fornecimento de produto, serviço ou crédito, principalmente se se tratar de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada ou se a contratação envolver prêmio", evidenciando um dever negativo, uma proibição, tratando-se de uma confirmação do que prevê o art. 39, IV, porém específica para concessão de crédito, e sujeitando o contrato a anulabilidade, além de outras sanções, conforme estabelece o parágrafo único do art. 54-D.

O dever de informar também ganha contornos mais nítidos quando o consumidor é hipervulnerável em razão da idade, de modo que o art. 54-D, I, do Código de Defesa do Consumidor, prevê o dever de o fornecedor ter um cuidado adequado à idade do consumidor ao prestar a informação sobre contratação de crédito, revelando uma escolha pela atribuição do crédito responsável não apenas aos tomadores, mas também aos seus fornecedores.

Nos termos do art. 54-D, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor:

Parágrafo único. O descumprimento de qualquer dos deveres previstos no caput deste artigo e nos arts. 52 e 54-C deste Código poderá acarretar judicialmente a redução dos juros, dos encargos ou de qualquer acréscimo ao principal e a dilação do prazo de pagamento previsto no contrato original, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e as possibilidades financeiras do consumidor, sem prejuízo de outras sanções e de indenização por perdas e danos, patrimoniais e morais, ao consumidor.

A análise do dispositivo legal revela que o descumprimento, pelo fornecedor, dos deveres de informação ao consumidor e, especialmente ao consumidor idoso, pode acarretar a aplicação de outras sanções, conforme a gravidade da conduta do fornecedor e das possibilidades financeiras do consumidor, que serão analisadas em cada caso concreto, inclusive a atribuição do dever de indenizar.

O fornecimento de empréstimos aos consumidores idosos, prática que tem movimentado o mercado de consumo e causado graves problemas de superendividamento, precisa ser, então, repensado à luz dos planos de existência e validade do negócio jurídico, e ir além, com a efetiva aplicação da responsabilidade civil pelos diversos abusos de direito cometidos nesta seara. De fato, o próprio assédio de consumo deve ser caracterizado como dano11, pois viola a boa-fé objetiva, confunde o consumidor, explora seus pontos fracos e, a partir de sua ocorrência, o idoso hipervulnerável tem sua tranquilidade efetivamente violada e muitas vezes contrata sem saber o que está fazendo, sem entender o que está aceitando, assina para se livrar da pressão, cai em situação de superendividamento.

A responsabilidade civil na relação de consumo, em especial no consumo de crédito, surgida a partir da violação dos deveres objetivos de cuidado, do descumprimento da boa-fé objetiva e do desrespeito ao contratante hipossuficiente12, seja pelo dano patrimonial ou extrapatrimonial, decorrente do assédio de consumo ou da própria imposição de contrato, é objetiva, de modo que não se perquire a culpa, sendo seus requisitos o evento, o dano e o nexo causal, conforme resta estabelecido no art. 14 do Código de Defesa do Consumidor. E mais, essa responsabilidade pode ser contratual ou extracontratual, não fazendo diferença alguma, já que a Lei nº 8.078/1990 unificou essa dicotomia, que restou superada, notadamente pela adoção do conceito de consumidor bystander, ou vítima do evento ou acidente de consumo, nos termos do seu art. 17.

Mas de nada adianta estabelecer a responsabilidade civil dos fornecedores de crédito por suas práticas abusivas, desde a oferta predatória, até a imposição de um contrato não celebrado, se essa responsabilização não assumir as funções necessárias à coibição das práticas, fomentando a perpetuação das abusividades, mais lucrativas que o respeito à ordem jurídica.13 Enquanto a violação da tutela da pessoa humana for mais interessante, do ponto de vista econômico, do que o respeito à sua dignidade, as instituições financeiras continuarão a fazê-la, pois o lucro é que as move. Nesse sentido, as funções da responsabilidade civil nas relações de consumo precisam ser pensadas para além da eventual relação individual em questão, servindo para "reparar ou compensar o dano, punir o ilícito e prevenir o risco."14

A reparação ou compensação do dano tem um efeito especialmente evidente para o consumidor, de ver seu prejuízo reparado; a punição do ilícito destina-se mais especificamente ao fornecedor, como forma de penalidade em razão da ação ou omissão causadora do dano; por fim, a prevenção de riscos, como função preventiva15, tem como objetivo preservar a sociedade da reiteração de atos ilícitos, alcançando para além das próprias partes da relação. Portanto, a responsabilidade civil nesses casos não pode se limitar a reparar o dano causado ao consumidor, mas deve abarcar um papel maior, servindo de desestímulo a que as práticas que levam a esses danos sejam reiteradas pelos fornecedores de crédito16.

Enfim, não se olvida que a legislação brasileira dispensa ao idoso proteção especial, no âmbito constitucional, bem como por meio da legislação ordinária, que busca, através da regulamentação de seus direitos, promover a realização de sua dignidade humana, através da garantia de sua liberdade, autonomia e plena participação social, o que se dá, inclusive, com sua manutenção no mercado de consumo. Contudo, também é fato que o oferecimento do crédito se tornou perigoso e tem levado vários idosos ao superendividamento e à exclusão social. Diante dessa conclusão, é imprescindível analisar as relações de consumo de crédito realizadas por idosos e, portanto, hipervulneráveis, com absoluta atenção, atendendo aos ditames legais que os protegem e, mais, à vontade constitucional que determina a tutela de sua dignidade, com prioridade, enxergando a inexistência de contratos em que sua vontade não foi efetivamente obtida, invalidando os contratos celebrados com violação dos deveres de informação clara e objetiva, direcionada à sua compreensão, e responsabilizando civilmente os fornecedores que insistem em desrespeitar as normas cogentes e de caráter social estabelecidas no Código de Defesa do Consumidor.17

Além disso, fundamental é incentivar a tutela coletiva dos interesses dos idosos submetidos às práticas abusivas analisadas, devendo os legitimados do art. 82 do Código de Defesa do Consumidor e do art. 5º da lei 7.347/1985 promovê-la sempre que possível, já que se evidencia, em muitos casos observados, a existência de direitos difusos, coletivos e, ainda, individuais homogêneos, e essa forma de defesa de direitos mostra-se muito efetiva, na medida em que é capaz de coibir abusos contra consumidores indefesos e promover a correta responsabilização civil do fornecedor.18

Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/388902/fornecimento-de-emprestimos-a-idosos-hipervulneraveis
 

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