Danos contratuais e não contratuais entre partes contratantes

Danos contratuais e não contratuais entre partes contratantes


24/08/2023 - 18:06:00

1. Contextualização da discussão: O dano entre contratantes é necessariamente contratual?

Doutrina e jurisprudência estabelecem frutífero debate sobre os requisitos para atribuição do dever de reparar1, assim como sobre os regimes jurídicos aplicáveis, com relevantes impactos. Entre as instigantes discussões, a distinção entre as chamadas "responsabilidade negocial" e "responsabilidade extracontratual" costuma ser associada aos seguintes aspectos: a-) ônus da prova; b-) exigência da culpa; c-) termo inicial para reparação; d-) possibilidade de contratar limitação ao dano ou ao dever de reparar; e-) prazo prescricional; f-) nexo de atribuição e solidariedade; e, por fim, g-) relevância da capacidade civil.

Sob uma perspectiva crítica, é possível assinalar que o direito brasileiro não oferece uma distinção nítida entre responsabilidade negocial e não negocial, ao mesmo tempo em que a legislação, aparentemente, procurou diferenciar seus efeitos.

Nessa linha, a distinção destes regimes, embora encontre grande eco na literatura jurídica, é objeto de relevante divergência, que desafia sua importância, utilidade e mesmo seu sentido2. Pontes de Miranda já assinalava: "É possível, portanto, esperar-se que se apaguem as distinções entre a responsabilidade delitual e a responsabilidade negocial, de modo que se crie, por sobre elas, mais solidamente, outro sistema, unitário, de reparação fundada na culpa ou em equilíbrio material de posições jurídicas"3.

Na fase atual dos debates, a classificação responsabilidade civil negocial e não negocial nem está superada por completo, nem está imune a inúmeras e duras críticas4, e até mesmo a propostas de outros regimes, como uma terceira modalidade, fundada na confiança5.

Exemplar desta saudável discussão é a consagração do Enunciado n. 419 das Jornadas de Direito Civil da CJF, que estabelece: "O prazo prescricional de três anos para a pretensão de reparação civil aplica-se tanto à responsabilidade contratual quanto à responsabilidade extracontratual". Esta linha interpretativa denota clara aproximação entre os regimes - e quiçá a superação de sua distinção, o que se repete no âmbito das relações de consumo6, por meio de institutos jurídicos como o abuso do direito e mecanismos de atribuição de responsabilidade, em consonância a uma ótica que "abala as estruturas da divisão entre responsabilidade civil contratual e extracontratual"7.

Até aqui, procurou-se, em poucas linhas, expor as divergências entre a distinção - ou mesmo a aproximação - entre os regimes da responsabilidade negocial e extranegocial.8 Este estudo não aprofundará este interessante debate. O escopo deste texto é mais singelo, busca-se refletir sobre os critérios para estabelecer a natureza da responsabilidade, vale dizer, negocial ou não, e principalmente sobre seus problemas. 

2. A existência de relação contratual não é critério suficiente

Desde logo, é preciso apontar que o critério distintivo não é a existência de um contrato. Não basta observar se a discussão envolve partes contratantes para extrair a conclusão de que a natureza da responsabilidade em caso de danos seja contratual. Igualmente, a recíproca também não pode ser tida como verdadeira. Eis o problema.

É possível estabelecer uma grande lista de situações que não se encaixam na distinção entre o regime de reparação negocial e não negocial9, ou que trazem certo desconforto.

Assim, nas relações de consumo, há acentuada preocupação com "grande número de pessoas que 'gravitavam' ao redor dos contratos e relações de consumo, sendo afetadas por eles, sem terem até há pouco status contratual ou vínculo obrigacional que as pudesse proteger"10. Dessa maneira, há o que se tem designado eficácia obrigacional transubjetiva.

Em instigante caso, o TJSP considerou que a reparação do dano decorrente de explosão ocorrida em shopping de Osasco submete-se ao regime da responsabilidade extracontratual. Ao manter a compreensão do acórdão, o STJ sinalizou:

"MARINHA estava frequentando o shopping para realizar compras. Não havia, portanto, uma relação contratual direta entre ela e aquela sociedade jurídica, não sendo possível afirmar, de outra parte, que os danos sofridos tenham decorrido de um descumprimento das obrigações reciprocamente estabelecidas. Assim, no caso dos autos, não há como ser afastada a responsabilidade extracontratual".11

Os danos associados à ruptura injustificada das negociações, tratados sob o "guarda-chuva" da responsabilidade pré-contratual12, embora sejam usualmente conectados com o descumprimento de deveres contratuais, como defende Antônio Junqueira de Azevedo13, para parte da doutrina estão vinculados à responsabilidade extranegocial, como propõe Vera Jacob Fradeira14. Conforme se pode notar, "a imputação do dever de indenizar em razão de fatos ocorridos em períodos que antecedem a constituição da relação obrigacional - por meio da chamada culpa in contrahendo, segundo expressão tributável a Jhering -, aparece como um dos primeiros sinais de insuficiência da clássica diferenciação entre a responsabilidade civil contratual e extra-contratual"15.

 

Na outra ponta, a responsabilidade após o fim do contrato, tutelada frequentemente por meio da pós-eficácia obrigacional, pode envolver a proteção com base em elementos não contratuais ou negociais. Ilustrativamente, a contratação de disposições sobre não concorrência, sinaliza um vínculo negocial; enquanto no caso do trespasse, independentemente de previsão contratual a habilitando, o Código Civil presume sua vedação (art. 1.147) - em um regime de opt out. Por sua vez, o uso indevido da imagem de um funcionário após seu desligamento, sem que haja contratação a respeito, constitui ilícito absoluto. Neste último caso, não há nenhum dever contratual violado, e a abstenção do uso do nome e/ou da imagem não tem como fundamento específico a relação contratual pretérita.

Alguns exemplos sobre o caráter nebuloso da incidência da responsabilidade negocial ou extranegocial ajudam a percepção sobre como o sistema jurídico é contra intuitivo: (a) O atropelamento de duas pessoas na via férrea, uma pela queda durante o transporte, outra que caminhava próxima se desdobra, à luz da leitura tradicional, em sistemáticas distintas de reparação por danos. Em outras palavras, sob a ótica da jurisprudência: "A responsabilidade civil por danos causados por acidente ferroviário é, em regra, contratual quando o evento esteja relacionado com contrato de transporte previamente celebrado com a empresa responsável pela ferrovia, sendo extracontratual nas demais hipóteses em que não exista prévio vínculo contratual"16.

Na esfera do direito laboral (b), considera-se que o dano existencial se relaciona à responsabilidade extranegocial, eis que não fundado na violação do contrato de trabalho.17 Assim também nos casos de morte do empregado. Na compreensão do STJ, "nos casos de reparação por danos morais reivindicada por familiares de vítima fatal de acidente, os juros de mora devem incidir a partir do evento danoso, nos termos da Súmula n. 54/STJ, porquanto se trata de responsabilidade extracontratual, não obstante a relação originária entre o de cujus e o causador do dano ser contratual"18.

De modo próximo, (c) no âmbito do direito à saúde, colhe-se na jurisprudência do STJ diversos precedentes que consideram que "A responsabilidade civil por erro médico, na hipótese em que ocorre a morte da vítima e a reparação por danos morais é pleiteada pelos respectivos familiares, possui natureza extracontratual e, portanto, o termo inicial dos juros de mora é a data do evento danoso".19 Por outro lado, (d) a figura do terceiro cúmplice também desafia os limites da própria noção de inadimplemento contratual e de partes da relação, o que torna mais sofisticado o exame da natureza da responsabilidade civil nestas situações.

Vistos pelo raciocínio indutivo, típico da tópica20, se por um lado nos casos em que falta assinatura em um contrato a inclinação para a responsabilidade extracontratual seja mais fácil de admitir, como lidar quando há nulidade na formação do negócio jurídico?

Tome-se como referência recente acórdão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais21, em que se discuta a contratação por uma pessoa analfabeta, sem a obediência às formalidades legais. O julgamento concluiu pela invalidez do contrato, e pela contagem dos juros moratórios dos danos constatados, na forma da Súmula n. 54 do STJ, a qual, como se sabe, estabelece que "Os juros moratórios fluem a partir do evento danoso, em caso de responsabilidade extracontratual".  

Esse último exemplo busca ressaltar a falsa simplicidade em identificar uma relação negocial como elemento suficiente para definir o regime jurídico no direito de danos. Neste caso, o critério proposto por Tepedino, Terra e Cruz22 parece útil para entender a solução adotada pelo tribunal mineiro, na medida em que a diferenciação entre responsabilidade contratual e extracontratual se funda, na leitura dos autores, não em observar qual o dever descumprido, mas ter em conta se existe uma relação contratual válida, cuja violação independe de afronta a um dever legal ou contratado.

Como se pode observar, nem haver relação contatual é suficiente para definir que há responsabilidade negocial, nem a ausência de um contrato (celebrado ou negociado), é bastante para afastar esta modalidade.

3. Desdobramentos das discussões, os desafios estão postos

O acolhimento pela jurisprudência da distinção entre a responsabilidade negocial e extranegocial, da qual é um grande exemplo o enunciado da Súmula n. 54 do STJ, não pode ocultar os possíveis entrelaçamentos entre o direito de danos e a esfera contratual. Analogamente, o esmaecer da distinção entre a responsabilidade negocial e extranegocial não pode esconder o acolhimento, habitual, de sua distinção na jurisprudência.

 

Para Catalan, o critério da culpa como distintivo dos regimes não faz sentido, e a diferenciação baseada no regime probatório mostra-se igualmente insuficiente e precária para legitimar uma classificação estrutural23. Aliás, o novo formato de ônus probatório estabelecido pelo CPC parece oferece mais um argumento em seu favor. Na prática, o que se observa na flexibilização24 ou aproximação de regimes, é uma clara insuficiência da compreensão atual, o que sugere a necessidade de repensar o tema de forma ampla, não apenas no momento de "enquadrar" as situações jurídicas, mas igualmente ao avaliar as respectivas consequências.

Tais discussões exigem especial atenção diante dos efeitos de descumprimento de contratos que afetam terceiros, como no falecimento de um paciente, ou na hipotética falha na auditoria de uma grande empresa causando prejuízos aos seus acionistas minoritários25.

Igualmente, cabe cogitar quais as consequências das situações disciplinadas pelo regime negocial sem que a parte seja propriamente um celebrante do contrato, ou mesmo um contratante, com inúmeros exemplos no âmbito das relações consumeristas.

Sob outra perspectiva, é preciso recordar que os instrumentos contratuais podem ser empregados para alocação de riscos26 (e.g. Código Civil, arts. 49-A, parágrafo único e 421-A, inc. II), e estabelecer regimes diferenciados também em caso de descumprimento e mesmo danos. Dessa forma, no campo contratual, há possibilidade de definir-se disposições sobre a conduta das partes, sobre os efeitos da frustação de comportamentos esperados e mesmo em relação aos danos. Assim, apenas para lembrar alguns, é possível adotar mecanismos de garantia, estipulação de penalidades (e.g. por meio de multa); definir consequências pelo arrependimento (e.g. por meio das arras), pré-liquidação de danos (e.g. por meio de cláusula penal reparatória), entre tantas outras consequências práticas.

A própria circunstância de que deveres contratuais não nascem apenas da vontade das partes, nem as partes podem limitá-los de forma irrestrita, torna problemático riscar uma fronteira entre as modalidades de responsabilidade civil27. Acrescente-se ainda a hipótese de que as partes contratem regras que reforçam o cumprimento de deveres já estabelecidos na legislação.

Para retomar a frase da epígrafe, ainda temos muito o que cultivar neste tema. Em resposta ao questionamento central, se admitida a distinção entre os regimes, é possível que entre partes que em algum momento contrataram - ou são contratantes - haja danos submetidos ao regime extracontratual28, porém, como procurou-se se expor ao longo deste texto, essa resposta oferece mais problemas do que soluções.

A possibilidade de haver danos decorrentes de violação contratual e da lei, de forma simultânea, enfraquece ainda mais a distinção de regimes, como neste exemplo: "Os apelantes assumiram a obrigação de não concorrer com os apelados na distribuição e venda mercantil de produtos da marca X na Região do Distrito Federal, mas descumpriram tal obrigação, incorrendo em descumprimento contratual e concorrência desleal que impõe a correspondente reparação pelos lucros cessantes amargados"29.

Como se verifica, a responsabilidade negocial e não negocial, longe de serem ilhas, se não merecerem a unificação de regimes, estão ligadas por uma ponte cada vez mais robusta. Essas fronteiras borradas entre dois regimes frequentemente apresentados como bastante distintos estão associadas a várias circunstâncias, entre os quais: (a-) a possibilidade de danos, entre partes contratantes, sem relação direta com o contrato; (b-) a produção de efeitos anteriores à celebração do contrato no curso das negociações preliminares; (c-) a hipótese de danos após o cumprimento do objeto principal do contrato; (d) a eficácia da boa-fé, a qual impõe deveres independentemente da vontade das partes; (e-) a aplicação de deveres decorrentes da boa-fé como o duty to mitigate the loss pode apresentar distinções em matéria de responsabilidade negocial e não negocial; (f-) a possibilidade de as partes contratantes acordarem sobre certos efeitos em matéria de danos; (g-) a hipótese de danos decorrentes de violação contratual e legislativa ao mesmo tempo; bem como analogamente; (h-) a violação de contrato por força de violação de um dever legal. Sem enfrentar-se tais questões, permaneceremos em preocupante penumbra.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/389063/danos-contratuais-e-nao-contratuais-entre-partes-contratantes


 


 

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